[Publicado do "Diário do Minho" de 2002.09.09]

Subsídios para a biografia do pintor Lúcio Fânzeres (1909-1984)
José Moreira

Concorrer para que a história das artes em Braga seja elaborada com justiça, equilíbrio e verdade é tarefa importante. Não apenas a grande história, mas também a história que alguns consideram menor. Este contributo é o que estou a dar a um possível perito de história da arte que se abalance a realizar, sem esquecer ninguém, aquela história tão necessária como urgente.

Lúcio Fânzeres, nome artístico de Lúcio Brandão Teixeira Fânzeres, cedo revelou um temperamento artístico multímodo que iluminava as suas inclinações e aptidões reveladas. Nasceu, nos subúrbios de Braga, na freguesia de São Jerónimo de Real, no dia 09.12.1909, filho do comendador Domingos Alves Teixeira Fânzeres e de Maria da Conceição Brandão, sendo baptizado na igreja paroquial de Real em 06.02.1910.

Seu pai foi um conceituado pintor-dourador, diplomado pela Escola de Belas Artes do Porto e conhecido industrial de arte sacra, com estabelecimento centenário instalado até há bem pouco tempo, na Rua do Souto, n.os 132-134. A matriz da inspiração artística de Lúcio vem naturalmente de seu pai, que não só a despertou como, vendo que tinha homem, a modelou e amparou como lhe foi possível fazê-lo. Mas o artista aspira a ter um destino próprio, uma trajectória singular, a edificar um estilo, uma marca. Seu pai desejou que Lúcio Fânzeres frequentasse a Escola de Belas Artes, mas aquele recusou sempre com o linear argumento de que nenhuma escola o influenciaria e prepararia melhor do que o seu próprio pai o faria. E por essa razão e com esses fundamentos, frequentou apenas a Escola Industrial e Comercial de Braga, instalada naquele prédio que tem à ilharga uma torre ameada, no Largo Paulo Orósio, que eu também frequentei no ano de 1932.

Talhar o perfil de um artista, encontrar-lhe o estilo de se exprimir, seguir o rasto que levaram as obras que criou, seriá-las consoante o seu valor aproximado - são tarefas para um marketing sofisticado que, não advertindo particularidades nem inspirações singulares, se faz com a moda de cada tempo e abre caminho ao comércio da arte, que me parece ser o contrário da inspiração de criar.
Na verdade, há também os consumidores de arte que se guiam pelos ditames do marketing das galerias de arte e nunca passarão de meros consumidores, que a história não registará. Serão como que os parasitas que devoram os talentos alheios sem lhes acrescentarem nada, nem sequer o justo preço da obra adquirida.

Lúcio Fânzeres pôde exprimir-se livremente segundo as determinantes criadoras do seu talento específico, construir a sua obra multifacetada e rica de nuances e de conquistas, dispersa por mil e um destinos que nenhum registo fixou ou reteve. Essa dispersão não nos permite conhecer o que representa nem o que vale, se nela houve apenas comércio ou inspiração pura. Os seus retratos a óleo, esses correm mundo, ora fixando perfis de eclesiásticos, ora mostrando políticos ou meros cidadãos. A ninguém, que antes não faça essa indispensável viagem até aos seus possuidores, será possível esse exercício crítico da sua actividade pictórica. Quantos retratos pintou: dezenas, centenas, que sei eu!

Lúcio Fânzeres - escrevi-o, pela primeira vez, no Entre Aspas do "Diário do Minho" de 07.05.2001 - foi o inspirado pintor dos murais que se exibem - apesar dos maus tratos do tempo - na chamada Sala Egípcia do Sindicato dos Caixeiros, sita na Rua do Souto, n.º 9 - 1.º andar - corrigindo uma informação que também havia dado - veja-se o livro de que sou autor, "Instantes - Crónicas & etc". Neste preciso momento, o futuro daqueles murais corre sérios riscos de serem implacavelmente destruídos, visto que para aquele quarteirão está prevista uma "revolução" arquitectónica que descaracterizará aquele recanto do ainda não maculado pedaço do centro histórico. Lê-se que tudo estará tratado entre o Município e o IPPAR, que nós julgávamos uma barreira intransponível na defesa do património e se tornou um parceiro inseparável dos dislates que passam pelas cabeças dos autarcas e vão destruindo o que de melhor há no património arquitectónico bracarense. Que nos reservará o secretismo reinante sobre o futuro daqueles murais, amorosa e competentemente pintados por Lúcio Fânzeres e a sua equipa, nos anos 1935/36 do século XX, e também sobre a barbearia centenária que se situa no mesmo quarteirão a "revolucionar"?

Este pintor surpreendeu em vários momentos figuras típicas de uma Braga que produzia e ostentava estes paradigmas sociais, designadamente o Catitinha, que por cá estanciava por períodos de duração variável, o Passarinheiro, que exibia os pássaros que se deixavam cair no seu engodo fatal e os procurava vender aos transeuntes, e o Ardina, figura tão original na promoção da Imprensa do tempo.

Numa pesquisa possível, Lúcio Fânzeres revelou-se-nos autor de vários retratos de figuras da Igreja.
São diversos os que vimos no Paço Arquiepiscopal naquilo que não é ainda a desejável galeria dos Arcebispos e de alguns Bispos Auxiliares que serviram na Arquidiocese!
Também registamos obras de sua autoria, particularmente os murais que ilustram as paredes e os tectos de muitas igrejas do País, designadamente as que se ostentam na Matriz de Chaves e de Sela, nas igrejas da Aveleda e de São Torcato e também a Ceia que está no templo-convento de Montariol, subúrbios de Braga. Mas muitas outras seguramente registam a marca deste obreiro de muitas artes.

Coleccionador inveterado, seleccionava pássaros, coelhos, pombas e cães. Dedicou-se com alma à fotografia, hoje considerada já uma forma de expressão artística. No seu torno, dava expressão a canas de pesca, outro dos seus predilectos, e objectos de adorno. Apreciava a música clássica e nela deleitava o seu espírito consumido por um sonho, deixando voar até as paragens mais paradigmáticas da beleza que Deus espalhou pelas coisas e pelos longes e as distâncias. Como criador de poesia buscava comunicar e expressar a natureza íntima dos seus sentimentos, dando-se aos outros. Pintava a delicadeza feminina das rosas como expressão cimeira desse código de beleza. Este espírito simples e transparente, sem uma única pose para glória que se conheça, tinha naturalmente uma grande inclinação para as crianças e o seu mundo diáfano de jogos e fantasias - "Deixai vir a mim os pequeninos", tinha dito Jesus - e sentia-se criança quando convivia subtilissimamente com elas. Nunca teve filhos e como que se compensava disso amando todas as que via como irmãos mais novos que era forçoso amar. Estava-se perante o amor universalmente assumido, por recusa do amor particular.

Este pintor bracarense faleceu nesta cidade de Braga em 15 de Novembro de 1984 sem que, até hoje, ninguém tivesse tido a ideia de o homenagear numa simples memória evocativa. Personalidade estética rica, como se vê pelo resumo grosseiro que me foi possível erguer, apraz-me deixar esta nota, apesar de tudo procurada com amor, de uma vida gasta a servir a beleza e o bem.




Associado n.º 173 da ASPA