Para um amante do passado da sua cidade, pegar num jornal local é como lançar-se num voo para o desconhecido em que tudo quanto surge tem um extraordinário interesse, embora, na verdade, as notícias que se vão vendo, as informações que se vão colhendo, as páginas que se vão folheando não sejam assim tão desconhecidas quanto de início se julgava, pois há sempre uma ou outra coisa que as liga a algo de que já possuíamos, a alguma informação, a algum conhecimento.
Peguemos, por exemplo, neste anúncio publicado num jornal bracarense (Correio do Minho, Braga, 15 de Julho de 1948, pág. 2), a respeito do Palacete Matos Graça, ou Palacete Veloso, situado ali na esquina da Avenida Trinta e Um de Janeiro com o Largo da Senhora-a-Branca, que tanta água fez justamente correr há cerca de dois anos, quando se destruiu barbaramente o seu interior.
Quem conheceu minimamente este palacete - e foram imensos os bracarenses que durante longos anos nele entraram porque ali funcionou durante algumas décadas um posto médico da Segurança Social - pôde admirar os seus magníficos tectos e paredes pintadas, da autoria de um bracarense - Vicente José da Silva , que também foi pintor de santos - pinturas essas que recobriam praticamente todas as dependências do piso nobre, segundo um gosto muito frequente nas casas ricas de Braga e de todo o nosso país. Pôde também admirar a sua incrível escada, lançada sem qualquer problemas de ocupação do espaço, antes ostentando toda a riqueza dos seus possuidores; a pequena capela, curiosamente muito mais recatada que toda a restante casa; os vidros lapidados e cinzelados que se viam em muitas das portas, etc., etc.
Mas poucos serão, hoje, os que conheceram ou se lembram do recheio que o palacete tinha. Naturalmente, julgava-se que seria condizente com o exterior, sobretudo com aquela imponente balaustrada, autêntica renda de pedra que coroa a fachada e lhe dá uma altura desmedida, sinal de afirmação da riqueza do seu proprietário, da vontade de vincar publicamente o seu poderia económico.
Como é natural, todos pensávamos que esse mobiliário deveria ter sido riquíssimo, feito nas melhores casas de marcenaria artística de Braga, que tantas eram, e onde sobressaíam nomes que se tornaram bem conhecidos em todo o país, sendo frequentes as encomendas provenientes de Lisboa, Porto e tantos outros locais. Por riquíssimo, deveremos entender algo de gosto neo-barroco ou neo-rococó, algo que mostrasse com grande ostentação o poderio económico, mais do que o gosto efectivo do seu possuidor. Se é certo que estas peças tinham que possuir alguma capacidade funcional, elas deveriam servir, sobretudo, como uma marcação do
status que o seu possuidor detinha na sociedade bracarense, algo que lavasse a sua possível origem pobre, agora que estava "nobilitado" pela posse de uma grande casa onde se expunha um recheio espantoso, pelas múltiplas ofertas de peso às principais igrejas da cidade, ou pela participação em obras assistenciais ou educativas.
Com a notícia abaixo, ficamos a ter uma ideia aproximada não só do seu recheio - confirmando, assim, o que acima expusemos - como ficamos a saber o parco tempo que a casa esteve na posse dos seus primitivos proprietários, a exemplo, aliás, do que também ocorrera com o Palácio do Raio, esse com uma história ainda mais atribulada no que toca a mudanças de possuidores.
Por esta notícia, vemos também que o eclectismo era dominante, em que não havia pejo em ter as salas decoradas com peças dos estilos mais diversos, ostentando umas um espaventoso neo-rococó, e outras a severidade dos estilos do norte, bem mais recatados, embora não menos belos. A ligeireza da moda casava-se então com a severidade do poder.
E como seria de prever, também, a tudo presidiam os omnipresentes lustres de cristal ou as peças de Sévres, sempre com pegadeiras de bronze finamente cinzeladas e douradas; dourado, a cor que, mais do que qualquer outra, tinha que forçosamente marcar toda a casa.
Eis a notícia:
Importante Leilão
No Palácio Velozo, em Braga
Por venda do mesmo ao Estado no Largo da Senhora-a-Branca (Esquina da Avenida Salazar), no próximo sábado 17 e domingo 18 do corrente às 2 e ½ horas, de parte do seu rico recheio a saber
Salão: rica mobília estilo Luís XVI, dourada a ouro fino, com estofo de seda, guarnições de veludo e seda, grande carpete, jarrões Sevres com guarnições de bronze, candelabros de mármore e bronze, lustres e apliques em cristal e bronze, piano de gabinete do conhecido Fabricante (T. Gors & Kallmam) -
Sala de visitas: mobília de torcidos, espelhos, gravuras, etc., etc. -
Salão de bilhar: bilhar com todos os pertences, mesas para jogos diferentes, cadeiras e sofás, etc. -
Quartos de cama: diferente mobiliário completo e avulso, lindos e bons adornos e enfeites. -
Escada: colunas e vasos em mármore, passadeiras de veludo com respectivos metais. -
Sala de Jantar: rica mobília em carvalho do Norte (Estilo Henrique II) com cristaleira sendo as cadeiras guarnecidas a sola gravada, serviço de loiça para almoço e jantar, cristais diversos, pratas e tudo o mais exposto para venda. Este leilão é feito por intervenção da
ANTIGA AGÊNCIA DE LEILÕES DA RUA DE PASSOS MANUEL, 60-64, DO PORTO. AGENTE - C. MESQUITA - TELEF. 22733.
Nota: Para o leitor que, acaso, queira conhecer um pouco mais a história deste palacete - inaugurado no ano de 1884 ou 1885 e cujos interiores foram destruídos no final do ano 2000 -, lembramos que nesta mesma coluna da ASPA, o nosso saudoso associado Sr. José Moreira escreveu então um
veemente texto de protesto contra a sua delapidação e transformação num edifício de apartamentos de luxo, sem qualquer respeito pela arquitectura original e pela sua decoração pictórica interior
(Enquanto o camartelo destrói implacável o palacete [Matos Graça]
"Diário do Minho", 13 de Novembro de 2000, pág. 7). Deverá ver-se também o texto de Maria Leonor Vaz de Carvalho Godinho intitulado
A alegoria cénica do eixo central do palacete Matos Graça ("Diário do Minho", 12 de Janeiro de 2001) e as linhas que lhe dedicámos no nosso livro
A Freguesia de São Vítor. Braga (Braga, Junta de Freguesia de São Vítor, 2001, pág. 34-38).
Veja-se ainda a página na net do Projecto Bragatempo
(www.projectobragatempo.net), onde são dadas a conhecer 30 fotografias feitas ainda no início da destruição do palacete.
Associado n.º 7 da ASPA
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Palacete Matos Graça... há uns anos atrás!
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